terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Uma prova de desamor

"Uma prova de desamor"
Por Henrique Cazes

Um dia, em fevereiro de 1986, o telefone tocou e eu ouvi a voz de meu amigo japonês, produtor de discos de samba Katsunori Tanaka. Ele me ligava de um orelhão em frente a quadra da Mangueira, durante o velório de Nelson Cavaquinho.


Sua queixa era emocionada:

— Ele fez aquele samba que diz “em Mangueira quando morre um poeta todos choram”, mas não tem ninguém chorando aqui, não. Eu é que estou ao lado do caixão dando informações.
Esse episódio serve para ilustrar o desconhecimento do carioca por sua cultura, mesmo que ela esteja muito próxima de seu cotidiano. A mistura da perda de identidade causada pela ida da Capital para Brasília, seguida da fusão com o cacoete cosmopolita desenvolvido no passado, fez do carioca atual um cidadão que não prestigia os valores culturais de sua cidade. Por isso mesmo não podemos perder oportunidades para firmar o que há de mais valoroso em nosso passado. A passagem em brancas nuvens do centenário de Noel Rosa no sábado, 11, foi algo que me deixou absolutamente chocado.
Afinal, trata-se do maior compositor brasileiro de música popular em todos os tempos. Isso é pouco? Tendo vivido 26 anos e alguns meses, Noel Rosa foi um fenômeno. Ótimo melodista, poeta maiúsculo, cronista da vida carioca e inovador na maneira de se fazer samba, gênero ainda novo naqueles anos da década de 1930. Fora tudo isso, foi o primeiro artista branco de classe média que subiu o morro para interagir com os sambistas das comunidades, juntando pedaços da cidade como hoje algumas ONGs se arvoram a fazer. Deixou uma obra extensa que resiste ao tempo e chegou aos dias de hoje atual e por vezes profética. Imaginem, em 1931 ele já falava de álcool motor. Retratou as mazelas do país com tamanha profundidade que seu samba “Onde está a honestidade” segue atual no século XXI, especialmente em anos eleitorais.
Pois nada disso mexeu com os dirigentes culturais da cidade, a fim de que marcássemos a data da forma como Noel merecia. Mais do que homenagear um ícone cultural, levar Noel para o público, principalmente os mais jovens, é ensinar a gostar do Rio, a compreender a alma da cidade. Antes que algum ex-dirigente de nossa Secretaria municipal de Cultura argumente que nada foi feito por falta de recursos, é bom lembrar os R$ 1,3 milhão pago de cachê a um cantor sertanejo por nossa prefeitura. Com metade do dinheiro dava para fazer um Ano Noel Rosa cheio de atrações e com um aspecto educativo que levasse o artista ao encontro das crianças e jovens da rede pública de ensino. Acredito que, para se apaixonar por sua cidade, um carioca precisa ler Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Sergio Porto, assim como ouvir Cartola, Noel e Nelson Cavaquinho. Num momento em que se exalta a retomada da auto-estima carioca, deixar o centenário de Noel Rosa passar como passou foi uma prova de desamor que nós os apaixonados não podemos admitir.


Henrique Cazes é músico.


Fonte: Celso Merola, por e-mail.

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